Inovação que vem da floresta: rede Origens Brasil mostra que valorizar a Amazônia de pé e seus povos é o melhor negócio
segunda-feira, setembro 26, 2022
Não há mais como pensar no futuro da Terra sem olhar para as florestas e toda riqueza natural e humana que elas suportam. Valorizar a sociobiodiversidade virou elemento-chave na equação dos valores que guiarão os negócios do amanhã. Lar da maior floresta tropical do mundo, é no Brasil que se encontra um projeto pioneiro na promoção de negócios que celebram a Amazônia viva e seus povos.
Criada em 2016, a rede Origens Brasil funciona como um elo entre produtos de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outras populações tradicionais de áreas protegidas na região, e empresas dos mais variados setores, promovendo conexões comerciais com ética e transparência capazes de gerar impactos positivos para as populações e seus territórios.
No meio do caminho, instituições e organizações parceiras da rede apoiam as comunidades na resolução de dificuldades que possam surgir, por exemplo, na estruturação da cadeia de produção, logística de vendas e capacitação para desenvolvimento de um produto que atenda às demandas de qualidade do mercado. Ao todo, a rede conta com 71 organizações comunitárias e instituições de apoio técnico local.
Em seu sexto ano de existência, a iniciativa criada pelo Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) e ISA (Instituto Socioambiental) vê o número de empresas cadastradas aumentar a cada ano. Das cinco iniciais agora já são 35, chegando a um total de mais de R$ 13,2 milhões de movimentação financeira acumulada desde 2016.
A lista de empresas reúne nomes grandes em seus setores de atuação, como Natura, Wickbold, Osklen e Havaianas, além de membros mais novos que estão ajudando a repensar a lógica produtiva na floresta -- entre eles a Vert, celebrada marca franco brasileira de calçados que usa borracha amazônica na produção, a Mãe Terra, marca de alimentos naturais e orgânicos pertencente à Unilever, e a Manioca, startup que comercializa, para o Brasil e o exterior, produtos regionais provenientes da biodiversidade.
“Precisamos jogar luz sobre a economia oculta da floresta”, diz Patrícia Gomes, gestora e articuladora da rede Origens Brasil. “Ainda é um número pequeno dentro do potencial da economia da floresta em pé que podemos viabilizar. Há muito a ser feito”. Alguns produtos têm maior oferta que demanda e em outros casos, mais demanda que capacidade de entrega nos territórios. Castanha, cumaru, borracha e pirarucu são os mais negociados dentro da rede.
“Trabalhamos atualmente com 66 produtos e ingredientes. Eles são veículos de histórias, tradições e saberes da floresta”, afirma Patrícia. Na ampla e diversificada lista é possível encontrar desde alimentos, como as tradicionais castanhas do Pará, o peixe pirarucu, concorrida matéria-prima da culinária amazônida, e o cumaru, a "baunilha da Amazônia", até óleos essenciais, biocosméticos e artesanatos. São como "pacotes de soluções" para uma economia sustentável na floresta, que preserva histórias, cultura e saber tradicional dos povos.
Diálogos que expandem
Mesmo no contexto político e econômico desfavorável de 2021, marcado pela pandemia e enfraquecimento da gestão pública ambiental no país, a tendência de crescimento da rede seguiu em alta. Durante o ano passado, o Origens expandiu sua presença para um novo território em Rondônia, o Tupi Guaporé, passando a operar em cinco grandes áreas, incluindo Rio Negro, Solimões, Norte do Pará. Atualmente soma mais de 2.910 produtores de 63 etnias, sendo 46% mulheres (indígenas, quilombolas e extrativistas).
Ao fortalecer as cadeias da sociobiodiversidade em 44 áreas protegidas, a estimativa é de que cerca de 13 mil pessoas sejam potencialmente beneficiadas pela rede, contribuindo para a manutenção de 58 milhões de hectares de floresta em pé, área superior ao território da Espanha. “Mesmo durante tantos desafios, seguimos em frente, nos fortalecemos e ampliamos. É nos desafiando na construção de soluções e negócios que crescemos”, ressalta a gestora
Anualmente, há avaliações sobre a qualidade das parcerias e sugestões de melhorias nas relações entre as comunidades produtoras, as instituições de apoio e as empresas, além de encontros online e presenciais, como o que aconteceu entre os dias 21 e 22 de setembro em Alter do Chão, no Pará, para facilitar conexões entre os diferentes atores que atuam com a sociobiodiversidade na Amazônia.
“A rede nos permite participar de um processo de comércio justo, onde todas as partes estão atentas aos grupos e áreas mais frágeis. Temos garantias de que está havendo desenvolvimento das pessoas e ganho de autonomia das comunidades nas pontas”, diz João Carlos Kipper, coordenador de inovação social da Mercur, empresa das áreas de saúde e educação.
“Isso mostra que é possível ter a Amazônia viva através de uma rede onde todos assumem suas responsabilidades”, diz. Desde 2010, a empresa gaúcha compra anualmente de 2 a 5 toneladas de borracha nativa da Terra do Meio, no Xingu, para transformá-la em materiais de educação – entre eles, um apagador que estampa animais de biomas ameaçados no país – e bolsas térmicas.
Desde jovem acompanhando a luta dos ribeirinhos para protegerem suas terras de invasores ao mesmo tempo que buscavam um meio de nela subsistir, Raimunda Rodrigues, líder na Reserva Extrativista do Rio Iriri, no município de Altamira (PA), afirma que a rede ajuda a quebrar estereótipos negativos. “O Origens chegou para nos ajudar a mostrar para mais empresas e pessoas que nós produzimos com sabedoria para manter a Amazônia em pé. Muita gente que não conhece os ribeirinhos, extrativistas e indígenas às vezes acha que somos preguiçosos, mas não é assim. Nós trabalhamos com diversos produtos e nossa floresta está em pé”, diz a liderança.
Presidindo a Coopaflora, cooperativa no norte do Pará que gerou renda de R$ 645 mil entre fevereiro e junho deste ano para comunidades locais com a comercialização de castanha, a quilombola Daiana Figueiredo também comemora a visibilidade pública que a rede traz para o povo que trabalha com a floresta. “Nós éramos esquecidos no passado e nosso produto era vendido por valores muito baixos, que não eram justos. Então, o Origem trouxe oportunidades de avanço para todos nós”.
Enquanto em 2021 cerca de 40 famílias atuaram diretamente na comercialização da castanha pela cooperativa, em 2022 a participação mais que dobrou, alcançando cerca de 100 famílias beneficiadas. O resultado é reflexo da articulação da cadeia promovida pela Coopaflora com o apoio do programa Floresta de Valor, realizado pelo Imaflora, que fortalece organizações da cadeia de produtos não-madeireiros.
“O diálogo intercultural é fundamental nas relações dentro da rede e na convivência respeitosa entre os diferentes atores. No início, havia muita desconfiança das comunidades não cumprirem prazos de entrega ou de as empresas não cumprirem acordos. Mas nós fomos criando um ambiente de confiança”, destaca Kleber Karipuna, do Instituto Kabu, organização que atua na proteção do povo Kayapó Mengkragnoti -- ameaçado por práticas de grilagem ilegal, garimpo e desmatamento -- e no fortalecimento de atividades econômicas sustentáveis na floresta.
Em outubro de 2021, o Origens Brasil foi apresentado como case de sucesso no modelo de sistema agroalimentar inclusivo, socialmente justo e sustentável no Dia Mundial da Alimentação, em Nova York, na ONU. “Precisamos entender a importância de se trabalhar em rede e a estratégia de apoiar a resistência dos povos da floresta, de apoiar a economia de cuidado com a floresta”, reforçou André Villas-Bôas, secretário executivo da Rede Xingu+, fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e conselheiro do Origens Brasil.
Repensar modelos e respeitar o tempo da floresta
Dentro da rede, há inúmeros casos de parcerias bem-sucedidas, ainda que após um longo tempo de negociação e adaptação de expectativas entre as partes. É o caso da parceria da associação yanomami Hutukara e a marca Mãe Terra que levou ao lançamento de um arroz com 15 espécies de cogumelos coletados de forma sustentável na terra indígena dos yanomamis. Foram três anos de conversas e pesquisas desde o contato inicial, facilitado pelo Instituto ATÁ, do chef de cozinha Alex Atala e pelo ISA, até colocar o produto no mercado.
Felipe Lucci, gerente de sustentabilidade da Mãe Terra, lembra que no início ocorreram muitas conversas. Afinal, segundo ele, era algo muito novo para a gigante de bens de consumo trabalhar com uma comunidade indígena fornecedora de matéria-prima. Além disso, havia muitas demandas dos processos de qualidade da empresa maior, que nem sempre fazem sentido para negócios da sociobiodiversidade, mais específicos e sujeitos ao próprio tempo da natureza.
“Batemos muito a cabeça para viabilizar isso, a gente teve que ter muita paciência para conseguir chegar a esse lugar que estamos hoje”, destaca. Parceria com famosos de todos os nichos ajudaram a transmitir os valores dessa união, sem restringir a comunicação de marketing ao produto em si -- a Mãe Terra tornou os problemas que ameaçam os povos yanomami assunto central nas peças de divulgação do arroz. “Nossa ideia era alimentar uma mudança, começando pelo prato”, diz. O vídeo de lançamento teve mais de 70 milhões de visualizações no Youtube. “Um dos melhores vídeos de lift na plataforma”, comenta Felipe, celebrando os resultados no mecanismo de mensuração do interesse do público nos anúncios. Resultado: houve uma alavancagem de 30% nas vendas.
Para o líder indígena Maurício Ye’kwana, da Hutukara Associação Yanomami, preservar a sociobiodiversidade e apoiar os povos que ajudam a protegê-la é urgente diante das ameaças crescentes contra a floresta. “O Estado brasileiro questiona por que indígena quer tanta terra se não produz nada? Nosso trabalho é pela sustentabilidade. Estamos buscando geração de renda através dos nossos próprios projetos e com valorização do conhecimento tradicional”, afirma, destacando que, além dos cogumelos, eles produzem cacau, castanha, artesanato e arte.
Maior do Brasil, a terra indígena yanomami tem mais de 9 milhões de hectares, abrangendo os Estados de Amazonas e Roraima. Cerca de 350 comunidades indígenas que somam mais de 30 mil pessoas na região sofrem com a invasão garimpeira, um problema crônico que remonta ao final da década de 1970 e que tem aumentado com a nova corrida pelo ouro nos últimos anos.
Amanda Latosinski, engenheira de produção no ISA, destaca o trabalho importante de articulação que foi feito. “Como instituição de apoio ficamos no intermédio dos dois mundos, fazendo uma ponte. Teve muita conversa. A parceria é resultado de uma combinação de diferentes atores”. Ela destaca que o nome cogumelo yanomami, que foi cadastrado no INPI, possui um grande valor muitas vezes responsável por atrair o consumidor final para o produto, mostrando como valorizar a sociobiodiversidade traz muitos benefícios econômicos, com ganhos para todas as parcerias.
Valor compartilhado
Uma pesquisa de percepção de valor feita pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (CEATS), da FEA-USP, ouviu empresas, instituições de apoio e também consumidores sobre a rede Origens Brasil. Da perspectiva corporativa, a pesquisa concluiu que a viabilização de parcerias comerciais com os povos da floresta é um grande valor da rede. A iniciativa também foi celebrada pela geração de inovação e mudanças na forma de pensar dentro das empresas e nos consumidores, além de agregar valor à imagem e à marca dos negócios.
Para as organizações comunitárias e instituições de apoio, a principal motivação para participar da rede é inserção em um mercado ético, que gera impactos positivos locais. A contribuição com o fortalecimento e visibilidade das organizações, acompanhada da valorização cultural e territorial, que desperta percepção de valor dentro das próprias comunidades, foram outros pontos altos do estudo.
Na ponta final dessa cadeia, os consumidores ouvidos disseram que os produtos da rede estimulam mudanças de mentalidade e passam segurança sobre a origem e a garantia de relações éticas e justas por trás da produção. Por meio de um QRCode estampado na embalagem, qualquer pessoa pode rastrear a história do produto: quem produziu, onde e como. Para dar mais transparência ao processo, a partir de novembro, a rede Origens Brasil vai tornar público quanto cada empresa compra de ingredientes na rede, o que permitirá aos consumidores avaliarem a magnitude das ações da marca.
Alavancando o mercado da sociobiodiversidade
Kavita Hamza, professora da FEA-USP, enxerga três caminhos possíveis para alavancar a sociobiodiversidade dentro dos negócios. Um deles é sensibilizar a alta liderança da empresa para que as tomadas de decisão levem em consideração as questões socioambientais. Essa sensibilização pode ser feita tanto de baixo para cima, com funcionários de níveis mais baixos na hierarquia corporativa cobrando mais atenção à temática das médias e altas gerências, quanto o inverso, com o próprio CEO abraçando a sociobiodiversidade.
Outro caminho é por meio de uma rede de troca de conhecimentos, incorporando as empresas dentro de um ecossistema de diferentes tipos de fornecedores para entender que o jeito de fazer negócios é diferente. “Uma frase muito comum de se ouvir é que ‘o tempo da floresta é diferente’. Muitos gestores dizendo que tiveram de rever o horário das reuniões, o prazo para pagamento, o parcelamento, um monte de coisas que para a maioria dos fornecedores é de um jeito, mas que para essas comunidades funciona de outro jeito”, conta a pesquisadora que liderou o estudo de percepção de valor sobre a rede Origens.
Por isso, segundo ela, é importante as empresas estarem dentro dessas redes de inovação para entender esses diferentes jeitos e tempos de fazer negócios. “E o terceiro caminho essencial é a questão de políticas públicas”, prossegue. “Enquanto não tivermos incentivos do governo para que as empresas trabalhem na direção da sociobiodiversidade, continuará sendo um trabalho de formiguinha”, afirma.
Para a especialista, o poder público poderia ter uma conversa mais atuante com a sociedade civil para implementar de forma mais intensa e robusta as inovações sustentáveis na cadeia de valor. “Isso pode virar política pública, esse é o caminho para tornar os produtos da sociobiodiversidade parte do nosso dia a dia e da realidade das organizações como um todo, e não de apenas um grupo", defende. É hora de escalar soluções para proteger o futuro de quem cuida da floresta.
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