Semeadores de água: conheça projetos no Brasil que "plantam" um futuro hídrico mais seguro com SBNs
quarta-feira, junho 01, 2022
Eis um dado do presente determinante para o futuro humano: a ameaça à água doce é maior do que a sofrida por ambientes terrestres e marinhos — enquanto os últimos perderam 40% de sua biodiversidade desde 1970, a queda em rios, lagos e córregos foi de 80%, de acordo com estudo de 2020 publicado na revista científica Nature. No megabiodiverso Brasil, segundo monitoramento da ONG The Nature Conservancy Brasil (TNC), 40% de 4 mil médias e grandes cidades analisadas possuem mananciais em nível médio ou elevado de degradação.
Não só a qualidade da água — e, com ela, a capacidade de hospedar vida — é pressionada, mas também a quantidade disponível deste recurso natural, tendo em vista que diferentes condições ambientais e atividades econômicas aumentam a pressão e a competição sobre sua oferta. Atualmente, cerca de metade da população mundial (3,6 bilhões) vive em áreas com escassez hídrica, número que poderá aumentar para até 5,7 bilhões em 2050, pelos cálculos da ONU.
"No caso do Brasil, com crescimento desordenado das cidades, desmatamento, poluição, e mais uso de água do que a capacidade de repor, estamos entrando no cheque especial da água", diz Samuel Barrêto, gerente nacional de água da TNC, acrescentando que 35 milhões de brasileiros enfrentam escassez hídrica.
Segundo Samuel, a engenharia convencional "não vai dar conta de resolver" o problema. As soluções da infraestrutura cinza, como são conhecidas as obras tradicionais, são necessárias, mas insuficientes para resolver o problema, garante. Felizmente, para garantir água de qualidade e em quantidade no futuro, o Brasil e outros países têm investido nas chamadas Soluções Baseadas em Natureza (SBNs), baseadas no fortalecimento das "infraestruturas verdes" da própria natureza.
Onde a natureza é solução
As SBNs imitam processos naturais para proteger, gerenciar e recuperar ecossistemas, incluindo os de água doce, de forma sustentável. Em tempos de mudança climática, elas podem ser usadas para gerenciar inundações, secas e outros eventos extremos. Estudos mostram que essas soluções podem fornecer 37% da resposta para manter o aquecimento abaixo de 2°C e ajudar o mundo a evitar os piores efeito da crise climática.
"Ao reconstituir a capacidade dos sistemas naturais cumprirem suas funções ecológicas, podemos promover os diversos usos da água, como o abastecimento doméstico, a produção agropecuária, navegação, geração de energia, turismo e lazer", elenca Samuel.
O Programa Produtor de Água é um caso bem sucedido de aplicação das SBNs no Brasil. Criado em 2001, ele passou a implementar, a partir de 2015, projetos de conservação e recuperação da vegetação nativa, construção de barraginhas e de terraços em propriedades rurais. Não tem mágica no processo: recuperação de mata nativa resgata nascentes e evita que sedimentos se acumulem nas bacias hidrográficas e diminuam a capacidade de vazão.
Já as barraginhas são pequenos reservatórios de água escavados em forma de bacia no terreno, que ajudam a conter fortes chuvas e armazenam água para recarregar o lençol freático. Isso aumenta a umidade do solo, beneficiando a agricultura, além de alimentar nascentes. As barraginhas também evitam o escoamento superficial da chuva e o transporte de sedimentos para os corpos d'água, o que causaria erosão e assoreamento. Os terraços são outra prática de combate à erosão, organizando a lavoura em diferentes níveis para equilibrar o escoamento das águas da chuva.
Mais de 86 mil hectares foram trabalhados nos 60 projetos apoiados até o momento. E cerca de 2.500 produtores receberam pelos serviços ambientais prestados, segundo dados da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico). Um programa de PSA (Pagamento por Serviços Ambientais) dá suporte financeiro ao produtor rural, que também recebe apoio técnico para construir terraços e barraginhas, recuperar nascentes e cobertura vegetal, e praticar a agricultura sustentável.
"Sem o engajamento dos proprietários rurais nada vai acontecer porque a maior parte das terras no Brasil são privadas", explica Samuel. As técnicas para plantar água são simples, econômicas e beneficiam não somente o meio ambiente, mas também a produção rural.
Ação em rede em Extrema e Mantiqueira
Criado em 2005, o Projeto Conservador das Águas, no município de Extrema, é pioneiro no Pagamento por Serviços Ambientais associado à implementação das práticas de conservação de água e solo. Foram cerca de 6.378 hectares protegidos dentro de 7.300 hectares, 224 contratos em propriedades rurais beneficiadas com o PSA, além da implantação de mil barraginhas e 40 mil metros de terraços, segundo a ANA.
"Hoje, essa iniciativa ganhou escala e está sendo conduzida em uma área equivalente ao tamanho de Portugal, no Plano Conservador da Mantiqueira", diz Samuel. Na Serra da Mantiqueira, onde mais de 400 municípios são contemplados pelo plano, a meta é restaurar 1,5 milhão de hectares, cumprindo mais de 10% da meta climática brasileira de restauração.
É uma conta em que todos saem ganhando: o município melhora a sua gestão ambiental e alavanca políticas públicas, e os produtores rurais fortalecem seus negócios, trazendo mais desenvolvimento à cidade. "Esse é o tipo de solução que evidencia como a natureza possibilita o desenvolvimento regional onde meio ambiente e pessoas prosperam conjuntamente", diz Samuel, criticando discursos de que a natureza seria um impeditivo ao desenvolvimento do país.
Além do poder público e dos produtores rurais, projetos como esse contam com a participação de empresas, Comitês de Bacias Hidrográficas e organizações da sociedade civil, como a própria TNC. A ação conjunta permitiu que a ONG alavancasse ações de recuperação de água e do solo em mais de 124 mil hectares no Brasil. "Se fôssemos agir sozinhos, só teríamos conseguido restaurar mil", compara.
Nascentes de Mariana se recuperam
O programa Produtor de Água vem inspirando iniciativas pelo país. Uma delas é o Produtor de Águas em Mariana, cidade de Minas Gerais que sofreu o maior desastre ambiental do Brasil, quando, em 2015, uma barragem da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, se rompeu. Os rejeitos atingiram o Rio Doce e seus afluentes, deixando animais e a população humana sem acesso à água limpa.
No programa, 73 propriedades tiveram áreas de nascente selecionadas para recuperação ambiental. Nelas, foi realizada a recomposição da vegetação, com o plantio de espécies nativas em 70 hectares antes degradados. Outros 30 hectares foram beneficiados por meio da implantação de 200 barraginhas. Neste ano, a meta é contemplar mais 50 hectares.
O projeto é fruto de uma parceria entre a Prefeitura de Mariana e o Instituto Espinhaço. A ONG alcançou a marca de 4 mil hectares de áreas recuperadas com a restauração de vegetação nativa no Cerrado e na Mata Atlântica a partir de SBNs, incluindo a implantação de mais de 500 barraginhas. "As ações beneficiaram cerca de 8 milhões de pessoas que vivem em significativos territórios hidrográficos no Brasil", resume o presidente e fundador do instituto, Luiz Oliveira.
Comunidades tradicionais na linha de frente
O conhecimento de comunidades locais e tradicionais sobre o funcionamento dos ecossistemas tem papel fundamental para a melhor gestão da água nas SBNs. Exemplo disso é o projeto Agroflorestando Bacias para Conservar Águas, no município de Muquém do São Francisco (BA), que prevê implementar 60 Sistemas Agroflorestais, os SAFs, nas comunidades quilombolas de Boa Vista do Pixaim e da Fazenda Grande.
A iniciativa foi criada após escuta das comunidades sobre seus problemas, como a água de péssima qualidade. "Elas relataram um problema grave de 'quebra dos barrancos' porque a margem do rio se encontra sem vegetação, causando o assoreamento do rio", conta Irlan Silva de Almeida, coordenador do projeto. "Com a implantação dos SAFs poderemos resolver essas questões e aumentar a disponibilidade de água com qualidade a médio prazo, já que depende do crescimento das plantas."
O objetivo é ampliar a quantidade de água de qualidade em 16 hectares na bacia do São Francisco com a plantação de 9 mil árvores até 2023, além de promover ações de educação ambiental. Cada família recebe equipamentos, insumos e animais no valor de R$ 18.400 e assistência técnica para implantação dos SAFs. Assim, espera-se que os beneficiários aumentem sua fonte de renda e segurança alimentar.
Janileide da Silva Pinto, quilombola da Boa Vista, recebeu os materiais para colocar em prática o projeto na próxima semana e contou sobre sua expectativa por dias mais prósperos. "A nossa região é muito quente e o rio fica tão baixo que as pessoas conseguem atravessar a pé. Espero que com esse projeto melhore a revitalização do rio para que permaneça com bastante água. As árvores vão ajudar nisso."
Para os próximos passos, Irlan vislumbra a certificação orgânica da produção e sua comercialização. O engenheiro agrônomo integra a Humana Brasil, instituição responsável pelo projeto, que já desenvolveu 35 iniciativas de SBNs com mais de 45 mil pessoas, inclusive uma que viabilizou água potável para 500 famílias indígenas.
O projeto Agroflorestando Bacias para Conservar Águas está entre os 26 selecionados pelo programa Águas Brasileiras, capitaneado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, com aporte de R$ 48 milhões da iniciativa privada. Os projetos selecionados contemplam mais de 250 municípios de 10 estados, atendendo a quatro bacias hidrográficas.
Desafios e potências das SBNs na gestão da água
"Atualmente, as infraestruturas verdes representam menos de 5% do investimento total em infraestruturas relacionadas à água e ainda menos quando comparadas com as despesas globais de gestão de recursos hídricos", lamenta Luiz, do Instituto Espinhaço. Samuel complementa dizendo que nem 10% dos 5 mil municípios brasileiros praticam medidas como o PSA. Ambos defendem a necessidade desses projetos ganharem escala no país.
"O Brasil tem 114 mil km de rios com algum tipo de degradação, segundo o Atlas Esgotos. É quase um terço do caminho da Terra à Lua", dimensiona Samuel. "Imagina só a possibilidade de investimentos para despoluir esses rios, gerando oportunidade de emprego e desenvolvimento regional."
Mas, além de mais investimento público e privado, as SBNs dependem de uma mudança cultural. "Ainda prevalece um modelo mental de que a água é um recurso infinito e que a engenharia vai resolver qualquer escassez. Mas água não dá em tubo", diz Samuel. "Precisa haver um entendimento mais claro de que SBNs são parte da resposta."
E o que cada um de nós pode fazer? Primeiro, precisamos superar a crença de que basta fechar a torneira. "É preciso entender que a água não vem da torneira", diz Samuel. Ele aconselha as pessoas a participarem dos mais de 200 Comitês de Bacias Hidrográficas e de coletivos de causas ambientais, onde a questão da água é debatida pelos diversos setores da sociedade.
Outra recomendação é estar atento às propostas dos candidatos eleitorais para votar naqueles que se preocupam em combinar desenvolvimento e sustentabilidade. "É tão complexo tudo isso que ninguém sozinho vai dar conta de resolver. Com governos, sociedade e empresas agindo de maneira integrada, mesmo que existam diferenças, podemos obter respostas importantes para avançar." Projetos semeando bons exemplos nós já temos, e o futuro agradece.
Fonte: Um só Planeta
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