Água, a nova fronteira da sustentabilidade
segunda-feira, março 23, 2020
No Dia Mundial da Água, a pecuária de excelência
mostra que o produtor pode gerir esse líquido precioso.
Hoje, 23 de março, é o Dia Mundial da Água. Na
pecuária, o uso da água é um dos temas mais debatidos por ambientalistas.
Afinal, o boi é vilão nessa história? O repórter da revista DBO e zootecnista,
Renato Villela, esteve no Tocantins para mostrar um trabalho de excelência na
gestão da água. Chamados de “produtores de água”, os pecuaristas que se dedicam
à causa vêm mostrando que ela é alimento para o gado e fonte de perpetuidade de
seu patrimônio, ao criar mecanismos de preservação.
Santa Água
A água é a “nova fronteira” da
sustentabilidade. Diretamente associada ao bem-estar animal (sede traz
sofrimento) e à produção de carne (boi que não bebe não come), a água começa a
escassear onde era abundante, colocando a atividade sob risco em vários pontos
do País. “Usá-la de forma racional é questão de
sobrevivência. Tê-la em abundância e qualidade, um direito dos animais”, diz
Mateus Paranhos, coordenador do Etco, Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e
Ecologia Animal, da Unesp/Jaboticabal. Há forte
pressão da sociedade nesse sentido, confirmada por estudos cada vez mais
frequentes sobre comportamento animal e “pegada hídrica”, quantidade do recurso
que se usa para obter um produto, desde a fazenda até a indústria, incluindo os
insumos utilizados.
Nos sistemas fortemente baseados no confinamento de
longa duração, como o norte-americano, fala-se em 15.415 litros para 1 kg de
carne. Nos de pasto, como o brasileiro, esse número ainda não está disponível.
Mas estudos iniciais da Embrapa indicam uma “pegada” menor. Muitos pecuaristas
ainda não se deram conta, mas, além de produtores de bois, terão de se tornar
produtores de água.
Andrade, um respeitado selecionador diz que a
“intimação” veio da própria natureza. Quando chegou na região do Bico do
Papagaio, há 35 anos, encontrou um modelo típico de pecuária extensiva:
piquetes grandes, com divisões atreladas a pequenos córregos, onde os animais
matavam a sede.
Se o pasto não era servido por um riachinho,
recorria-se às famigeradas cacimbas, cavando áreas baixas até encontrar um
lençol freático. O modelo convencional de dessedentação do gado, contudo,
logo mostraria suas fragilidades.
Grande susto
Na década de 1990, criador de nelore, decidiu dividir pastagens e
levar água até os piquetes não contemplados por cursos naturais. Furou poço
artesiano, construiu reservatório e alguns bebedouros, instalou encanamentos,
mas essa estrutura atendia pequena parte dos pastos. A grande maioria
continuava a ser servida por córregos e cacimbas. Foi então que o clima começou
a dar suas cartas, complicando a história.
“Há 10 anos, percebemos,
que a quantidade de chuvas estava diminuindo e que a seca estava se esticando”,
conta o filho, Ricardo José de Andrade, que toca a fazenda junto com o pai e o
irmão, Paulo Henrique. O histórico pluviométrico da fazenda começou em
1986 e comprova isso.
A mudança climática trouxe consequências graves:
córregos que nunca secavam passaram a secar; nascentes começaram a minguar. Não
tardou para que o projeto de intensificação de pastagens fosse ameaçado.
“Estávamos com a fazenda melhor dividida, os pastos cortados por córregos, mas
não tínhamos mais água”, diz Ricardo.
O primeiro passo para enfrentar o problema da
escassez hídrica era encontrar novas fontes de abastecimento. A propriedade tem
rebanho de 3.000 cabeças, alojadas em 1.300 ha de pastagem. O poço
artesiano escolhido para dar início à troca das aguadas naturais por bebedouros
e atender dois retiros contíguos produziu menos água do que o esperado. A
previsão de 3.500 litros/hora não se concretizou.
Produzindo água
Que fazer diante disso? Perfurar outros pontos da fazenda não
sairia barato nem era garantia de sucesso, devido ao histórico de poços de
baixa vazão na região. A saída foi encontrar uma forma complementar de produção
hídrica. A fazenda possui três minas d`água maiores, uma delas, inclusive,
utilizada há 25 anos para abastecer a sede, mas nunca se havia cogitado usá-las
para matar a sede dos animais. “Na época, nem pensávamos em instalar bebedouros
na fazenda”, diz Ricardo.
O bom funcionamento das
minas ao longo dos anos, associado à sua localização privilegiada (700 m acima
do poço já existente) despertou a criatividade dos produtores, levando-os a
desenhar um modelo inovador de captação hídrica, que alia a produção da
nascente com a do poço artesiano.
Antes de
descrever esse sistema, entretanto, voltemos às nascentes salvadoras. O cuidado
com esses “pontos de descarga” dos aquíferos é fundamental para se ter
abundância hídrica na propriedade. É necessário isolá-las, recompor a mata
ciliar que as protege (caso tenha sido destruída) e perenizá-las. Seu
Epaminondas usou, para isso, um sistema semelhante ao descrito na reportagem “Fartura
no campo”, publicada por DBO, em abril de 2015.
A
técnica consiste em cavar bem o local, retirando todo tipo de sujeira e barro
podre até se identificar os “olhos d`água”. Em seguida, calça-se o buraco com
pedras grandes que permitem o percolamento e filtragem da água. Por cima,
coloca-se pedras menores e passa-se sobre elas uma camada de solo-cimento.
Assim, a nascente fica coberta, evitando-se assoreamento, presença de animais
silvestres e acúmulo de matéria orgânica que pode contaminar a água.
Sistema interligado
Com a nascente protegida e estruturada, providenciou-se sua conexão
com o poço artesiano. O sistema integrado funciona da seguinte maneira: a água
represada e canalizada na mina segue, por gravidade, até uma caixa d’água.
Para aumentar a quantidade de água captada, o mesmo trabalho foi feito em
outras duas nascentes. “Cada nascente contribui, em média, com 1.000 l/h no
auge da seca, o resto vem do poço”, conta Seu Epaminondas. Uma vez que o volume
da caixa é preenchido, a água sai por um cano na parte superior e é despejada
dentro do poço.
O sistema, portanto, se retroalimenta. Do poço, a
água é bombeada para dois reservatórios, um de 30.000 e outro de 100.000
litros, descendo por gravidade para abastecer os bebedouros dos piquetes que
compõem os dois retiros contíguos da fazenda. Detalhe importante: além da bomba
hidráulica localizada no poço artesiano, há outra de reserva junto à caixa,
independente e pronta para bombear a água que vem direto das nascentes, caso
haja algum problema com o primeiro equipamento.
A primeira etapa do projeto teve início em
2009, quando foi preciso “dar uma arrancada” em virtude do agravamento da crise
hídrica. Naquele ano, construiu-se o reservatório de 100.000 litros e
estendeu-se a linha de canos (5 km) até o fundo da fazenda, onde a situação era
mais crítica. O
produtor instalou seis bebedouros que davam acesso a 12 pastos. “No ano seguinte
a seca foi forte, os córregos novamente secaram, mas não tivemos problema para
fornecer água aos animais”, recorda Ricardo. Com o passar dos anos, mais pastos
foram sendo estruturados. Hoje, a fazenda conta com 140 piquetes, 116 deles
(83%) servidos por água encanada, mas a meta é chegar a 100% nos próximos dois
anos.
Distribuição ininterrupta
A exemplo da dobradinha que se viu entre a nascente e o poço
artesiano para produzir a quantidade de água necessária ao rebanho, era preciso
garantir que a distribuição fosse efetuada de maneira ininterrupta. A solução
encontrada foi fazer os dois reservatórios de 30.000 e 100.000 litros operar em
sintonia.
Para evitar desperdício, foram instaladas duas bóias,
uma elétrica que desliga automaticamente a bomba do poço, e outra que controla
a passagem de água do reservatório mais alto. “Quando se atinge a capacidade
máxima, a bóia fecha, evitando transbordamento”, explica o produtor.
Travessia da represa
O mesmo modelo de abastecimento hídrico já descrito foi usado no
terceiro retiro da fazenda, do outro lado da rodovia. Quando essa gleba foi
comprada, 17 anos atrás, tinha um poço artesiano com capacidade para 6.000
l/hora e um pequeno reservatório situado na parte mais alta. Os pastos eram
grandes e, para serem divididos, precisavam de água. Da mesma forma que nos
outros retiros, o poço não tinha vazão suficiente. “Rebaixamos a bomba algumas
vezes na tentativa de captar mais água, até o momento em que não deu mais”,
conta Seu Epaminondas. Sem nascentes que pudessem fornecer água por gravidade,
o jeito era fazer mais poços. “Furávamos, furávamos, mas não encontrávamos
nada”, conta ele.
Ao todo, foram feitas 11 tentativas. O
insucesso levou a uma situação extrema. “Para garantir o abastecimento do
reservatório tivemos de puxar água de caminhão-pipa por dois anos seguidos”,
relata o produtor. Não
havendo fontes de água de melhor qualidade, Seu Epaminondas decidiu recorrer à
represa. Mas logo depois um vizinho indicou o local por onde provavelmente
passava um “veio d`água”. Dito e feito. “Encontramos um poço com água de ótima
qualidade e vazão de 30.000 litros/hora”, conta.
O problema parecia, enfim, resolvido, mas a alegria
durou pouco. O novo poço ficava do outro lado da represa, oposto ao
reservatório. Foi preciso levar o encanamento até ele, passando por 150 m de
águas profundas.
Água limpa para maior produção
A Vale do Boi conta com 98 bebedouros, um número alto,
considerando-se que a fazenda faz pastejo rotacionado, mas Seu Epaminondas
preferiu não trabalhar com praças de alimentação centrais. Os bebedouros ficam
dentro dos piquetes ou em suas divisas. “A fazenda já estava organizada assim e
decidimos não mudar”, justifica o selecionador, que dessa forma, diminuiu
disputas por água e situações de estresse dentro dos lotes, garantindo o
bem-estar animal.
Outra
preocupação constante é com a qualidade hídrica. Tanto a sede da propriedade
quanto os pastos são abastecidos pelos mesmos reservatórios. “A
água que o gado bebe é a mesma que a gente toma”, diz o produtor. Para
evitar desperdício, Seu Epaminondas usa bebedouros menores, com capacidade
entre 1.200 e 600 litros, uma tendência hoje defendida por consultores. “Com
isso, temos de jogar menos líquido fora quando esvaziamos esses recipientes
para lavagem”, justifica.
Boi quer água pura
“Nossas observações de campo mostram que os animais não bebem água
quando alguns tipos de algas estão presentes. Eles têm repulsa”, afirma Mateus
Paranhos, do Etco. Essa percepção tem sido comprovada por pesquisas. João Luís
Santos, da Especializo Gestão de Recursos Hídricos, de Campinas, SP, cita um
estudo realizado no Canadá sobre concentração de estrume na água e restrição de
consumo.
Constatou-se que 0,05 mg de estrume por litro já é
percebido pelos animais, fazendo-os procurar outras fontes. “É uma concentração
muito pequena, principalmente se considerarmos que um animal pode gerar até 20
kg de estrume por dia, quantidade suficiente para contaminar 40 milhões de
litros de água”, diz Santos.
A contaminação microbiológica não é o único parâmetro
avaliado. Há outros critérios de qualidade como odor e sabor, propriedades
químicas e físicas, presença de elementos tóxicos e concentração de compostos
minerais. Um estudo mostrou redução no consumo hídrico, consequentemente, no
desempenho produtivo, em função de altas concentrações de sulfatos na água, o
que provoca perdas econômicas.
“É um
dinheiro que o produtor está deixando de ganhar por não ter água de boa
qualidade”, diz. “A prevenção é a melhor forma de ter água de qualidade
na propriedade”. O especialista faz um apelo: “Precisamos valorizar nossos recursos
hídricos. Não temos uma cultura de valorização, não consideramos a água um
insumo produtivo, como a genética, a nutrição ou o pasto, e não temos noção do
prejuízo que traz uma água de má qualidade à pecuária, devido a nosso próprio
desconhecimento”.
Dimensionamento correto
Tão importante quanto a qualidade da água para o bem-estar dos
animais é garantir-lhes boa oferta do precioso líquido e facilidade de acesso
para dessedentação. Para isso, é necessário reduzir a distância a ser
percorrida até a fonte de água e dimensionar corretamente os bebedouros.
“Restrição
hídrica causa forte estresse, gerando não somente problemas de ganho de peso.
Se o bovino se sentir ameaçado pela falta de água, vai mudar seu comportamento,
movimentar-se mais, tornar-se mais agressivo. Isso também acontece se o
bebedouro for insuficiente para o número de animais. Nós também ficaríamos
agressivos se estivéssemos com sede, tivéssemos apenas um copo d`água e cinco
pessoas querendo tomá-lo. Os animais não são diferentes
de nós”, afirma Santos.
Um bovino
adulto consome, em média, 50 l de água por dia. Segundo Adilson Aguiar,
professor da Faculdades Associadas Uberaba e diretor da Consupec (Consultoria e
Planejamento Pecuário), para dimensionar o bebedouro, considera-se que, em
média, apenas 10% do lote chegando para beber a cada vez, desde que os animais
não estejam passando por restrição de água. Aguiar explica que os animais
preferem água de bebedouros à de aguadas naturais, mesmo tendo acesso livre a
ambas. Além de ter aspecto mais límpido, essa água apresenta temperatura mais
alta do que a dos mananciais, um atrativo para os bovinos.
Fonte: Portal DBO
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