Contra mudanças climáticas, Embrapa faz intercâmbio com comunidades tradicionais
quinta-feira, setembro 07, 2017
Estatal investe em programas que conciliam produção e conservação; para ONG, iniciativa ainda é tímida.
Quando o pesquisador Aldicir Scariot foi escalado para coordenar um
projeto com comunidades extrativistas do norte de Minas Gerais, ele
resolveu mapear todas as áreas que pertenciam às famílias para estudar
como aprimorar a produção local sem que fosse preciso desmatar áreas
vizinhas.
Doutor em biologia pela Universidade da Califórnia e membro da unidade
da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) que lida com
recursos genéticos e biotecnologia, Scariot estava a par do debate
científico mais avançado sobre o tema. Mas ele teve de mudar os planos
ao perceber que as comunidades encaravam seus territórios de outra
maneira.
"A gente pensava muito na propriedade e nas divisões espaciais: aqui
área produtiva, ali unidade de conservação. Mas as comunidades não olham
só para a sua propriedade, e sim para a paisagem como um todo. Para
elas todas as áreas são utilizáveis e passíveis de conservação e
manejo", ele conta à BBC Brasil.
Os trabalhos se moldaram à realidade, e a Embrapa passou a trabalhar
não só nas áreas em posse das comunidades. Desde o início ficou claro
para Scariot que seria preciso conciliar a perspectiva acadêmica com a
tradicional.
"O desafio foi se despir da prepotência de achar que o único
conhecimento válido era o acadêmico. Comunidades indígenas e
tradicionais detêm um conhecimento que às vezes é milenar: ele vai
passando de geração a geração e foi construído no dia a dia
empiricamente, na observação e convivência com a natureza."
Essa postura, diz o pesquisador, norteia os trabalhos da Embrapa num de
seus projetos mais amplos: o Bem Diverso, coordenado por Scariot,
apoiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e
financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente.
Iniciado há um ano e meio, o programa engloba seis territórios
brasileiros com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano): o Alto Rio
Pardo (MG), o sertão do São Francisco (PE e BA), Sobral (CE), o Médio
Mearim (MA), o Marajó (PA) e o Alto Acre (AC).
Segundo o pesquisador, mais de cem pessoas atuam no projeto, entre
funcionários da Embrapa e parceiros locais. Em cada área a equipe
escolheu espécies vegetais relevantes para as comunidades e tenta
melhorar a qualidade dos produtos desde a coleta até o processamento. O
objetivo é aumentar a renda das famílias e preservar os ecossistemas
locais.
'A touceira é como uma mãe'
Coordenador do projeto no Marajó, o pesquisador da Embrapa Silas
Mochiutti trabalha com produtores de açaí, principal fonte de renda de
ribeirinhos da região. Mochiutti pesquisa a atividade há décadas,
comparando diferentes métodos de manejo. "É difícil separar o que
levamos a eles do que aprendemos com eles. Muitas informações vêm da
vivência dos produtores, de coisas que vimos que davam certo", afirma.
Uma das técnicas incorporadas pela empresa envolve a reprodução dos
açaizeiros. Mochiutti diz ter ouvido de muitos ribeirinhos que, ao
cortar um açaizeiro para que ele rebrote, deve-se extirpá-lo rente ao
solo, caso contrário a árvore não renasce.
Presidente de uma cooperativa de produtores de açaí em Afuá (PA),
Francisco Nazaré de Almeida explica à BBC Brasil o porquê da prática. "A
touceira [conjunto de palmeiras originadas de um caule principal] é
como uma mãe: enquanto ela tem um filho mamando, não consegue gerar
outro. Então tem que cortar bem baixinho para que esse filho vá embora,
os nutrientes do tronco possam descer e a touceira brote outra vez."
Outra técnica absorvida pela Embrapa trata do transporte de mudas de
açaí. O ribeirinho diz que só podem ser deslocadas mudas que estejam com
as folhas dobradas. "A gente diz que essa muda está com o olho fechado -
é como se ela estivesse dormindo na hora da mudança. Se a gente
transporta uma muda de olho aberto, ela não pega."
Silas Mochiutti diz que as duas técnicas jamais foram testadas em
laboratório, mas passaram a ser difundidas por causa do sucesso
verificado pelos produtores. "Às vezes são fenômenos quase
inexplicáveis, mas que na prática dão resultado."
O pesquisador diz que um ponto central do modelo proposto aos
ribeirinhos é a combinação entre açaizeiros e outras espécies de
árvores. Ele afirma que, conforme o preço do açaí subiu nos últimos
anos, muitos ribeirinhos começaram a derrubar a mata nativa para ampliar
as áreas de produção.
Mas Mochiutti diz que a estratégia não funciona. Segundo ele, é
importante manter outras espécies porque essas árvores servem de abrigo a
abelhas que polinizam os açaizeiros, ajudam a fixar nutrientes no solo e
protegem as palmeiras de doenças. Ele diz que em áreas que mesclam
árvores nativas e açaizeiros, a produção de açaí chega a cem sacas por
hectare, enquanto oscila entre 20 e 30 sacas em áreas pouco diversas.
Mudanças climáticas
Presidente da Embrapa, Maurício Antônio Lopes diz à BBC Brasil que
pressões para que a agropecuária brasileira reduza a emissão de gases
causadores do efeito estufa têm estimulado a pesquisa de técnicas que
conciliam preservação e produção. "O Brasil é hoje o país com a política
pública mais bem estruturada de agricultura de baixo carbono, que
depende inteiramente de tecnologias desenvolvidas por nós", ele afirma.
O presidente da Embrapa diz que pesquisas com comunidades tradicionais e
produtos nativos são outro elemento importante da estratégia da empresa
frente às mudanças climáticas. Além das atividades do programa Bem
Diverso, há pesquisas em curso sobre o controle de pragas em
cupuaçuzeiros, o desenvolvimento de variedades de açaí, técnicas de
manejo do umbu, o uso da permacultura e práticas agroflorestais, entre
outras.
Um dos projetos mais bem sucedidos da Embrapa nesse campo, segundo
Lopes, foi o resgate de um maracujá nativo do Cerrado, mais doce e menos
azedo que os tipos mais comuns.
"Era uma planta daninha que, uns 20 anos atrás, crescia aí pelos
matos", ele diz. Pesquisadores estudaram a planta e fizeram vários
cruzamentos até chegar à versão final, batizada de Pérola do Cerrado.
"Hoje é uma alternativa econômica fanstástica para produtores da
região", afirma. Segundo Lopes, a fruta causou frisson entre chefs
estrangeiros que visitaram recentemente a Embrapa.
'Sabedoria de faculdade'
No Alto Rio Pardo, a Embrapa distribuiu sementes do novo maracujá a
comunidades geraizeiras, populações tradicionais que vivem no Cerrado do
norte mineiro. Membro da comunidade de Água Boa, a geraizeira Maria
Neuracy de Fá diz que o Pérola do Cerrado se adaptou bem às roças locais
e virou fonte de renda para o grupo.
Ela elogia a convivência com os pesquisadores. "A gente trabalha e
colhe os frutos no Cerrado, e eles vêm com a sabedoria deles de
faculdade. É uma troca de experiência."
A geraizeira diz que um dos pontos mais úteis do programa é o apoio ao
intercâmbio com outras comunidades tradicionais. Na quinta-feira, ela
viajou para Diamantina (MG) para aprender com moradores locais como
fazer cosméticos a partir de frutos e plantas medicinais.
Para ele, a atuação da empresa é bem-vinda, já que autoridades locais
dão pouca atenção aos geraizeiros. "Os políticos daqui não aprovam a
ideia de comunidades tradicionais, porque nós mexemos com os interesses
dos latifundiários." Santos diz que a principal bandeira dos geraizeiros
é conter a monocultura do eucalipto, que avança sobre o Cerrado e
destrói nascentes.
Aldicir Scariot, da Embrapa, também diz se preocupar com a atividade.
Segundo ele, um dos objetivos do programa é "empoderar as comunidades
locais e contribuir para a reorganização do território, conservando as
nascentes e tornando-as mais resilientes às mudanças climáticas".
Para Isabel Figueiredo, coordenadora do Instituto Sociedade, População e
Natureza, ONG que atua com várias comunidades tradicionais brasileiras,
os trabalhos da Embrapa nesse campo "ainda são muito tímidos" se
comparados ao que a empresa investe em commodities ou outros setores.
Segundo Figueiredo, os pesquisadores da Embrapa que lidam com
comunidades tradicionais, conservação e desenvolvimento sustentável são
minoritários.
Mas ela diz que a Embrapa "pode fazer a diferença se entrar para valer
nessa agenda"."O pouco que já existe vem gerando resultados relevantes,
mas ainda é uma turma que atua ali dentro numa espécie de resistência",
afirma.
Fonte: G1
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