Para Carlos Rittl, do Observatório do Clima, o maior risco é criarmos "um país melhor à toa". Pode valer a pena
Um dos argumentos mais brilhantes em defesa de ação ambiciosa contra as mudanças climáticas foi dado pelo cartunista americano Joel Pett em 2010. Era o auge do escândalo dos e-mails roubados de climatologistas que ficou conhecido como “climagate”. Na charge, publicada no jornal USA Today, um homem discursa numa conferência da ONU, enquanto uma apresentação de Powerpoint enumera vantagens de reduzir emissões: independência energética, preservação das florestas tropicais, empregos verdes, cidades mais habitáveis, água e ar limpos etc. Na plateia, um cético do clima reclama: “E se isso tudo for uma grande fraude e nós criarmos um mundo melhor à toa?”
Uma dúvida parecida assola formuladores de políticas públicas e parte do setor privado no Brasil hoje, enquanto o país se prepara para definir os compromissos de redução de emissões que apresentará na conferência do clima de Paris, no fim deste ano. De um lado, há pressões da indústria sobre o governo para que a oferta brasileira de corte seja a menor possível – no máximo, um desvio de trajetória em relação ao que seria emitido se nada fosse feito, ou um compromisso de redução da intensidade de carbono do nosso PIB. De outro, o próprio governo hesita em voluntariar logo uma meta realmente proporcional à responsabilidade do sétimo maior emissor do mundo, por estratégia de negociação: se fizermos isso, raciocina o cânone diplomático, perderemos poder de barganha.
Há algum sentido nisso. A indústria, vitimada pela concorrência com a Ásia, pela política econômica desastrada e pelos próprios maus hábitos, opera no limite da competitividade e precisa proteger seus setores mais ineficientes. O Itamaraty quer evitar dar um passe livre a outros países para poluir e amarrar o Brasil a uma descarbonização intensiva entre 2020 e 2030. Em resumo, ninguém parece muito disposto a criar um país melhor à toa.
Só que passa da hora de quebrar essa lógica. O Brasil deve adotar uma meta ambiciosa de redução absoluta de emissões em todos os setores da economia, não porque outros países farão isso ou deixarão de fazê-lo, mas porque é vantajoso para o Brasil e reduz riscos para os brasileiros. Além disso, indústrias intensivas em energia que não regulem suas emissões poderão ser vitimadas por barreiras de países com metas a cumprir num novo regime climático. Protegê-las pode significar prejuízo ao restante do setor privado.
Poucos países do mundo têm tantas oportunidades de ganhar com a descarbonização quanto o Brasil. A cifra exata está sendo calculada por alguns dos maiores especialistas do país, sob encomenda do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Um relatório publicado em outubro do ano passado pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas dá uma pista: ele aponta vantagens competitivas em agricultura, silvicultura, etanol, outras energias renováveis e serviços ecossistêmicos – somente a comercialização de cotas de reserva legal é um mercado potencial de R$ 24 bilhões.
As maiores oportunidades estão no setor que responde pela maior parte do CO2 (dióxido de carbono) do país, o agrícola. Somadas, as emissões da própria atividade e as do desmatamento equivalem a 62% do total nacional. Dá para cortar muito: um conjunto de seis tecnologias produtivas que já vêm sendo aplicadas no país, no chamado Plano ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono), tem o potencial de cortar em um terço os gases-estufa do setor aumentando, ao mesmo tempo, a eficiência da propriedade – e, portanto, a renda do produtor. Estender o ABC dos atuais 3% para 100% dos financiamentos do Plano Safra é uma operação de ganha-ganha, cujo resultado, no longo prazo, seria promover emissões negativas (sequestro de carbono) nas propriedades, com aumento da eficiência da pecuária e do uso de fertilizantes. Tudo isso cumprindo o objetivo, declarado pela ministra Kátia Abreu, de turbinar a classe média rural.
Da mesma forma, é possível ampliar a meta, já decretada na lei nacional do clima, de reduzir o desmatamento em 80% na Amazônia e em 50% no cerrado: desmatamento zero em todos os biomas. Há terras degradadas e pastagens pouco produtivas de sobra para isso – segundo um estudo da Esalq-USP, somente o manejo correto de cercas poderia quadruplicar a eficiência da pecuária nacional, liberando área para a expansão da agricultura e a restauração de florestas.
No setor de energia o Brasil tem escorregado feio, como sabe qualquer pessoa que não chegou de Júpiter ontem. Escolhas erradas de regulação, uma paixão recente por combustíveis fósseis, mau planejamento e os efeitos das mudanças climáticas deixaram o país na paradoxal situação de emitir mais por uso de energia e ter falta de luz ao mesmo tempo – como se viu no apagão de 19 de janeiro.
O setor de transportes se fossilizou: subsidiamos gasolina e diesel e anulamos a competitividade do etanol. No de eletricidade, mesmo com a energia solar empatando em custo com o carvão mineral em leilões do ano passado, o governo deu incentivos incompreensíveis para permitir o retorno deste último: somente as quatro térmicas leiloadas em novembro aumentarão em 13% as emissões do setor elétrico. Semeia-se, assim, mais secas extremas no longo prazo e maior conta de luz no curto.
Derrubamos os investimentos em renováveis em 54% em 2013 e planejamos chegar a 2023 com pífios 2 gigawatts instalados em energia solar e 70% dos recursos investidos em fósseis. Enquanto isso, a China planeja chegar a 2017 com 70 gigawatts (17 Belos Montes) de energia solar instalados, e a insuspeita Arábia Saudita, a 6 gigawatts em 2025. Nos EUA, a indústria solar gerou 23 mil empregos em um ano – hoje há duas vezes mais trabalhadores no setor do que mineiros de carvão.
Uma maneira simples de colocar a energia de volta nos eixos é adotar uma meta em Paris que obrigue o setor a se descarbonizar e aumentar sua eficiência. O mercado, como sempre, espera apenas a sinalização correta do governo. Se alguém duvida, veja o caso de sucesso das eólicas, que o Estado incentivou num primeiro momento, para em seguida deixar o setor privado agir.
A janela de oportunidade está aberta: o mar de lama que atinge a Petrobras e a queda do preço do petróleo, por exemplo, dão margem de manobra para reduzir subsídios sobre fósseis e ressuscitar o etanol. As crises gêmeas da água e da energia também começam a despertar os brasileiros para a fragilidade extrema do país em que vivem. Para essas pessoas, construir um país melhor jamais será tarefa em vão. A conferir se o governo da presidente Dilma Rousseff entenderá essa mensagem.
*Carlos Rittl, 45, é secretario-executivo do Observatório do Clima, uma coalizão de organizações da sociedade civil.
Fonte: Época
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