Os planos de Fabricio Bloisi, de 37 anos, cofundador da Movile, desenvolvedora de aplicativos de celular e tablets com sede em Campinas, parecem ambiciosos. “Queremos ser melhores do que o Google”, diz Fabricio. A frase reflete o otimismo do mercado de empresas de tecnologia instaladas no interior do estado de São Paulo, um grupo de negócios que atraem investimentos, abrem vagas e pagam bons salários.
A Movile, por exemplo, tem 600 funcionários, cinco escritórios no Brasil, um na Argentina, dois na Colômbia, um na Venezuela e um nos Estados Unidos, no Vale do Silício. Em agosto, a companhia recebeu um aporte de 35 milhões de dólares de um fundo de investimento que tem entre os sócios um dos donos da AmBev, Jorge Paulo Lemann.
A Movile é mais uma empresa nascida dentro da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, um polo de conhecimento que nas últimas décadas criou a seu redor um ambiente de empreendedores e inovadores nas áreas de computação, química e biotecnologia.
“O interior paulista virou um polo de atração para quem quer estudar nasuniversidades de ponta e sonha em criar empresas milionárias a partir de uma boa ideia”, afirma Fabricio. Hoje, a Unicamp mantém uma rede de 237 “empresas filhas”, nas quais pelo menos um dos sócios se formou na universidade. Juntas, elas geram 15 369 empregos e faturam 1,5 bilhão de reais por ano.
Com a oferta de ocupações de qualidade, os salários estão em ascensão no interior de São Paulo. “Nos últimos cinco anos, os salários tiveram queda de 3,6% na cidade de São Paulo e aumento de 21,7% no interior”, afirma Luís Testa, diretor de pesquisa e estratégia do site de recrutamento Catho.
Significa que a diferença de ganho entre os profissionais que trabalham na capital e os que estão fora dela tem diminuído. A Catho registrou em seus sistemas mais de 94 000 anúncios de vagas nas 20 principais cidades da região. Trata-se do lado positivo de um quadro que não é bom para todos. As usinas de açúcar e álcool, que costumam puxar o crescimento do interior paulista, sofreram com a perda de competitividade diante da gasolina, do aumento dos custos de produção e da maior seca da história. Como resultado, a participação da indústria da cana no índice de emprego do estado, que representava 15,4% em 2013, considerando o acumulado de janeiro a setembro, caiu para 7,7% no mesmo período de 2014.
Os números negativos não se traduzem em crise do emprego. “A maior parte das oportunidades, tanto no interior como em todo o país, não está na indústria, e sim em serviços. Esse segmento reúne, inclusive, as unidades de pesquisa e desenvolvimento das indústrias”, afirma o economista Renato de Castro Garcia, professor do Instituto de Economia da Unicamp.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), os serviços representam 69% do produto interno bruto do interior paulista. A indústria responde por 29% e a agropecuária por 2%.
Um exemplo vem de outra empresa nascida dentro da Unicamp, a Griaule Biometrics, especializada em serviços biométricos, que venceu uma concorrência internacional de 88 milhões de reais e foi, nas eleições do mês passado, a fornecedora de um sistema antifraude que impediu o eleitor de ter mais de um cadastro biométrico.
A empresa começou em 2005 com dois fundadores e três estagiários. Hoje, tem 30 funcionários e atende clientes importantes, como Santander e Caixa Econômica Federal.
Os grandes investimentos que não param de chegar ao interior de São Paulo não se restringem ao universo das startups. A Embraer, por exemplo, apresentou em outubro o protótipo da aeronave militar KC-390, uma gigante de 35 metros de comprimento, 35 metros de envergadura e 12 metros de altura — é o maior avião já projetado e feito no Brasil. A produção será na unidade de Gavião Peixoto, região de Ribeirão Preto, e deve envolver 1 100 empregos diretos e 5 500 indiretos. A Força Aérea Brasileira (FAB) assinou contrato de 7,2 bilhões de reais por 28 unidades para entrega em 12 anos. A primeira está prevista para sair no segundo semestre de 2016.
Conexão global
Outra grandalhona do setor aeronáutico, a Boeing, inaugurou neste ano um centro de tecnologia em São José dos Campos. Um dos objetivos é produzir em grande escala biocombustível para aviões à base de cana, soja e macaúba. Até o fim de 2015, a nova planta contará com 15 gestores que vão coordenar, cada um deles, equipes de 20 pessoas no Brasil e em divisões nos Estados Unidos, na Europa, na Austrália, na Rússia, na Índia e na China. Brasileiros com vocação para trabalhos colaborativos, inglês fluente e mestrado têm prioridade na lista de contratações — a intenção é fechar o quadro com 100% de mão de obra nacional.
“Os líderes recebem treinamento em nosso centro de liderança nos Estados Unidos”, afirma Antonini Puppin-Macedo, diretor de operações e coordenador de pesquisa da Boeing Research & Technology no Brasil. “Os departamentos terão expatriados e residentes”, afirma ele, que acredita que as oportunidades de fazer carreira global não se restringem mais às capitais.
Os chineses também começam a se estabelecer no interior do estado. A BYD, especializada em ônibus híbridos e elétricos, baterias recarregáveis e novas energias, como painéis solares, escolheu Campinas para construir sua primeira unidade produtiva no Brasil.
O empreendimento teve aporte de 200 milhões de reais e vai começar a operar no início de 2015, gerando 450 empregos diretos. Já a automobilística Chery, que tem sede administrativa em Salto, inaugurou no fim de agosto uma fábrica em Jacareí, no Vale do Paraíba, em um terreno de 1 milhão de metros quadrados, com investimento de 1 bilhão de reais. A planta tem capacidade de produção de até 150 000 veículos por ano e vai criar 3 000 empregos diretos e indiretos.
DNA da inovação
A união produtiva entre empresas e universidade que se firmou no interior de São Paulo diz muito também sobre o perfil de quem é disputado pelas companhias estabelecidas por lá, que buscam mais do que incentivos financeiros e produtivos.
“O profissional ideal tem curiosidade, porque cultiva o espírito acadêmico e busca aprendizado em várias áreas, atitude de empreendedor, que é a capacidade de enxergar oportunidades, e alma de pesquisador, para transformar conhecimento em produto ou serviço”, afirma Ralf Piper, diretor global de qualidade, pesquisa e desenvolvimento da BRF. “Queremos aqueles que têm a inovação no DNA.”
A multinacional do ramo alimentício concluiu em setembro a ampliação de sua fábrica em Tatuí, onde foram investidos 70 milhões de reais, e anunciou, no ano passado, o início das atividades do novo centro de inovação, em Jundiaí, que recebeu 106 milhões de reais.
O centro tem 253 funcionários — profissionais formados principalmente em engenheira, química, nutrologia, biologia, bioquímica, biotecnologia e veterinária — e deve trazer mais sinergia aos processos, porque está no mesmo complexo onde já funcionam uma planta de distribuição e o laboratório de referência da empresa. A unidade concentra operações de pesquisa e desenvolvimento da Perdigão, anteriormente realizadas em Videira (SC), e da Sadia, que eram feitas na capital paulista.
Além da área administrativa, há duas minifábricas piloto, quatro cozinhas experimentais e três laboratórios, incluindo um de embalagens e outro físico-químico, que testa a vida útil dos produtos nas prateleiras. Chama a atenção a Área Sensorial e Instrumental (ASI), com equipamentos e profissionais treinados para entender as necessidades do consumidor e transformar sentimentos relacionados a sabor, aroma e percepções em informações palpáveis para a criação e o aperfeiçoamento de produtos. “A ciência não reside mais exclusivamente nos centros acadêmicos.
Ela hoje está no cerne de decisões estratégicas nas empresas”, afirma Luiz Ernesto George Barrichelo, diretor executivo do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais (Ipef), em Piracicaba (SP), idealizado e liderado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP.
Para tocar projetos colaborativos que melhorem o gerenciamento dos recursos naturais e, consequentemente, aumentem a produtividade, o Ipef mantém parcerias permanentes com dez instituições de ensino e pesquisa, como Unesp, Embrapa e 26 empresas associadas. Gerdau, Klabin, Duratex, Suzano e International Paper estão entre elas.
Os resultados são bastante práticos. Um deles é o Programa de Preparação de Gestores Florestais, criado há quatro anos pelo Ipef para acelerar o desenvolvimento de recém-formados. “As companhias relatavam que os jovens demoravam a amadurecer e, por isso, demandavam a realização de programas longos de trainee”, diz Barrichelo.
Os 20 selecionados anualmente passam cinco semanas aprendendo temas como trabalho em equipe, administração de conflitos, comunicação, finanças, folha de pagamentos, legislação e relação com as comunidades. As aulas são dadas por executivos das empresas apoiadoras e do mercado, além de professores das universidades envolvidas.
Em 2014, foram 75 inscritos de 23 instituições de ensino. O instituto virou QG de profissionais, cientistas e professores do Brasil e de países como Estados Unidos, Canadá e Austrália que exercitam a capacidade de trabalhar em equipes globais — habilidade, aliás, bastante cultivada nos modelos colaborativos e requisitada pelas empresas que escolhem o interior de São Paulo para se instalar.
Embalados pelos bons exemplos, outros ecossistemas se propagam pelo interior de São Paulo. A cidade de São Carlos ganhou no ano passado seu segundo parque tecnológico, o EcoTec Damha. O empreendimento é considerado de terceira geração por concentrar no mesmo espaço empresas, uma incubadora, condomínios residenciais e estrutura de comércio, serviços e lazer.
“Dos 143 lotes disponíveis para as companhias, 120 já foram vendidos”, afirma Fernanda Toledo, gerente de relacionamento da Damha Urbanizadora, responsável pelo projeto. Apenas duas empresas já estão em funcionamento, uma de engenharia e outra de materiais cerâmicos.
O Ecotec vai se beneficiar da cadeia produtiva que já faz da região de São Carlos uma das mais propícias à geração de inovação. Perto dali estão o campus da Universidade Federal de São Carlos, dois campi da Universidade de São Paulo, dois da Universidade Estadual Paulista e duas unidades da Embrapa. Todos acertaram convênios para desenvolver projetos em parceria com as empresas instaladas no parque.
“Em tempos de desaceleração da indústria, projetos colaborativos de pesquisa e desenvolvimento se tornam imprescindíveis para a criação de novos produtos, processos e modelos de negócios mais alinhados com o mercado”, diz Bruna Boa Sorte, diretora do Instituto Inova, que administra o Ecotec.
O jeitinho do interior
Se a esta altura você já ficou com vontade de arrumar as malas, vale considerar uma última questão: a cultura das companhias pode exigir adaptação. Principalmente se o destino for uma cidade mais afastada das regiões metropolitanas. “O interior vem passando por um processo de profissionalização das empresas familiares, inclusive em regiões a mais de 300 quilômetros de São Paulo, que antes não buscavam gente de fora”, diz Camila Sgavioli, sócia da empresa de recrutamento Asap, em São Paulo.
Os empresários contratam coaching para desenvolver os funcionários, organizam eventos internos com a presença de profissionais relevantes no mercado, participam de seminários. “É preciso assimilar que a competência técnica exigida é igual à cobrada aqui, mas as relações são diferentes”, afirma Fernando Mantovani, diretor de operações da recrutadora Robert Half, em São Paulo.
“Excesso de velocidade e agressividade, por exemplo, são entendidos como algo ruim. E ouvir uma história pessoal do colega ao lado depois de uma reunião não é perda de tempo — é um indício de que você faz parte do time.” Tem sentido. Para quem quer trocar a saturada capital por uma carreira que contemple realização profissional e pessoal, aprender a tocar a vida de um jeito mais leve não deve ser nenhum sacrifício.
Fonte: Exame
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